A vida como ela é... em tempo de tecnologia da telefonia celular.
O celular toca. A mulher verifica e sabe de onde vem a
chamada e quem está ligando.
Pausa. Vacila. Atende ou não atende. O som do celular insiste,
continua tocando.
Dúvida atroz. Atende
ou não atende. O celular persiste com aquele nunca e sem igual incomodo e irritante
som agudo. Naquele instante mais do que aborrecido, o som naturalmente de nível
baixo, chega aos seus ouvidos de forma estridente, demasiadamente vibrante,
aflitivo e pungente. A vibração do som das ondas sonoras percorre todo o
ambiente, um quarto envolvente e elegante, predominando a decoração vermelha,
requintado em seus detalhes. O ruído do celular naquele momento é
inconveniente, inoportuno, desfavorável.
Arrepende-se. Não deveria ter trazido ao local onde se
encontra o aparelho. Fazer o quê?
Para a maioria das pessoas, como para ela, o celular é
indispensável, no superlativo um vício.
Ela sabe. Infelizmente sabe. Tem certeza. É o marido quem
telefona.
Está inconsolável, prestes a um distúrbio neurótico, a beira
do histerismo, com sinais de uma distonia neurológica, manifestada pela
contração involuntária de alguns músculos.
Sente-se fraca, combalida, alquebrada. Mais que a força
física precisa da psicológica.
Atende ou não atende. Continua confusa, hesitante, insegura.
Tem medo. Sempre honesta em suas atitudes, autêntica em suas
ações, verdadeira em seus atos, com todas essas virtudes, não lhe é permitido fingir
ou enganar.
Por sua personalíssima retidão a consciência lhe cobra.
Muito mais que isso forma-se em seu subconsciente um conflito entre id, ego e
superego.
Na mão trêmula segura o celular que continua tocando próximo
ao ouvido.
Atende ou não atende. Ainda há tempo para momentos de
reflexão.
Relembra pela primeira vez quando aconteceu e depois se repetiu
várias vezes, censurada de forma ultrajante, injuriada e difamada, agredida verbalmente,
chamada de vadia e vagabunda entre impropérios menos ofensivos.
Numa segunda fase tudo foi mais violento: foi agredida
fisicamente, estapeada ficou com hematomas no rosto. Situação superada pelo pedido de desculpas e
uma viagem de reconciliação, um fim de semana à Buenos Aires.
O tempo passou e mais adiante a cena repetiu-se. Desculpas e outras noites portenhas, com
jantares, vinhos, tangos e muito de falso amor, compensado pelo fazer sexo.
Mas a maldade, ciúmes, o espírito de posse predominavam na
personalidade maléfica do marido. Cenas de agressões, martírio, repetiram-se.
A vida agressiva do marido misturava-se as suas aventuras
amorosas extraconjugais.
Ela tentou buscar defesa pela lei Maria da Penha. Não teve
coragem. Não o fez. Sentiu-se temerosa e envergonhada. O temor e a vergonha de
se apresentar numa Delegacia de Polícia.
Agredida, violentada, ressentia-se ainda pela falta de amor,
de algo aconchegante, de um companheiro
amigo,afetivo, fiel, ela que de fato até ali, até o celular tocar, tinha sido
companheira sofrida, a amiga desamada, mas sempre fiel.
Apesar disso tudo, sua consciência falou mais alto. De forma
inocente, sem saber de nada atendeu o celular. Foi fatal. O marido ciumento,
pretenso proprietário dos direitos da mulher, colocou no celular um aplicativo
com GPS. Descobriu que ela estava num motel.
Como macho ficou indignado e revoltado. Sua honra ultrajada.
Descobriu que era corno.