quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O bilhete

Dirijo-me ao templo de preferência da sociedade consumidora. Vou até a representação máxima, catedral imponente do capitalismo: shopping. Chego até ali porque somente naquele lugar tem salas de cinema.
Para chegar até lá tenho que ingressar no pátio descoberto compreendido como estacionamento e para isso supero um obstáculo tecnológico, uma cancela movida por sofisticado aparelhamento. Paro o carro ao lado de uma caixinha de metal exatamente no local, nem um pouco à frente, muito menos um pouco atrás. De dentro da caixinha ecoa uma voz feminina de comando, de timbre uniforme e metálico, sem alma e emoção, informando o que você deve fazer. Faço o que manda a mecânica voz: aperto o botão e “abre-te Sésamo”, cancela aberta. O aperto no botão, de forma automática abre a cancela e expele um bilhete. No verso há devidas informações: não deixá-lo no interior do carro ou extraviá-lo sob pena de severa restrição.
Diante disso, da necessidade de um cuidado maior, eu, como muitos homens avoados e distraídos, por medida de segurança, deixo o bilhete sob proteção de minha mulher, ela como todas as outras mulheres, organizadas e responsáveis.
Carro estacionado. Vamos ao lazer, assistir uma sessão de cinema. Pipoca comprada, água mineral sem gás e o filme. Agradável, bom momento de entretenimento. Satisfeito, volta para casa. Busca-se o bilhete que dá a autorização de saída para o devido pagamento. Minha mulher procura. Não encontra o bilhete. Não admite tê-lo perdido. Inconcebível. Vasculha a bolsa. Coloca todos os pertences para fora. Nada do bilhete. Indignada com ela mesma, jamais poderia pensar no que aconteceu. Resignada chega a conclusão de que de fato perdeu o bilhete justamente ela. Se ainda fosse o maridão, tudo bem. Mas com ela, nunca. Providências são necessárias para sair do estacionamento. Peço informações e me dirijo ao local indicado onde o procedimento será feito. A atendente me informa o que devo fazer: preencher duas folhas de papel com informações iguais, uma como proprietário do carro, outra como motorista, ação que parece mais ser um boletim de ocorrência policial ou uma ficha de nada consta, enfim, curiosos em saber de minha vida pregressa, pagar 15 reais - preço de uma entrada de cinema. Em todo esse processo se gasta aproximadamente 20 minutos, período em que me sujeitei a passar pelo vexame. O fornecimento dos dados ocorre ao lado do guichê onde as pessoas – as não distraídas - pagam regularmente suas taxas de estacionamento. Apoquentado com o preenchimento pensei o que as pessoas ao lado passavam e pensavam:
- Olha o distraidão! Trouxa! Enrolado!
Tudo resolvido, mas há revolta, resmungos. Tempo perdido com o ritual de procedimento, 15 reais jogados fora. Em seguida vem a reflexão, a voz da razão, a racionalidade, o ponderável, o razoável. E se o carro é arrombado, furtado. Responsabilidade da empresa concessionária pelo estacionamento. Terá que indenizar. Não há dúvida, resguarda seus direitos. As coisas se impõem por um simples e necessário bilhete.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Os esquisitos

São três amigos esquisitos, muito esquisitos. Um trio excêntrico, de comportamento estapafúrdio, de atitude extravagante, de relacionamento estranho, que chega a se dimensionar como um triângulo amoroso bastante esquisito, na verdade muito esquisito.
Pedro Ernesto é um dos amigos esquisito. Muito esquisito. Esquisito demais.
Tão esquisito como um pierrot, ou seja, um triste palhaço. Pierrot é um personagem de uma forma de teatro do século XV com apresentações que eram feitas pelas ruas e praças públicas. Pierrot vestia-se de modo desusado com roupas largas e brancas misturada às vezes com metade preta. A cara branca e uma lágrima desenhada caída abaixo dos olhos, figura de um triste palhaço.
Pedro Ernesto não se veste tal e qual um pierrot, mas usa uma roupagem meio esquisita. No entanto igual ao pierrot, Pedro Ernesto tem por característica de comportamento sua ingenuidade que é vista como um bobo, alvo de brincadeiras e gozações. É sujeito de bom coração que acredita e confia nas pessoas. Em certos momentos mostra-se solitário, lunático, alienado e distante inconsciente da realidade. Muito esquisito.
Isabel Maria é a amiga esquisita. Na história do teatro popular de uma época em que Pedro Ernesto seria o Pierrot, consequentemente Isabel Maria a Colombina. Colombina é uma serva ou empregada de alguma dama. Trata-se de uma moça linda e inteligente, de humor refinado e irônico, sempre envolvida em intrigas e fofocas.
Isabel Maria não é serva de ninguém, nem empregada de alguma dondoca. Na verdade é muito independente, além de atraente, linda e inteligente. Como toda jovem decidida e liberta é espevitada e fogosa, com um jeito de ser meio lambisgóia, afetada por suas atitudes muito esquisitas.
Otavio Augusto é o terceiro dos esquisitos. Alegre, fantasioso, enfim brincalhão, diverte a todos com seu jeito de ser. Parecido com o Arlequim, o terceiro componente do teatro popular de antigamente que tinha como função restrita divertir o público durante os intervalos de um ato para outro, com roupas espalhafatosas e trajes multicoloridos.
Por todas essas ilações entre os personagens os três amigos resolveram brincar o carnaval no clube da cidade e para tanto, não poderia ser diferente e fantasiaram-se de Pierrot, Colombina e Arlequim. Na peça teatral Pierrot é um apaixonado por Colombina, mas na verdade sua atração física é Arlequim, Arlequim que á a paixão de Colombina. No teatro, na ficção, assim se entende o estranho triângulo amoroso. Na realidade Pedro Ernesto como se sabe é o Pierrot, Isabel Maria a Colombina e Otavio Augusto o Arlequim. Assim compreende-se Pedro Ernesto que diz gostar de Isabel Maria, que ama Otavio Augusto, mas não é correspondida. Na verdade o triângulo amoroso une Pedro Ernesto a Otavio Augusto e descarta Isabel Maria. Tudo muito esquisito. No relacionamento teatral de Pierrot, Colombina e Arlequim há uma antiga marchinha carnavalesca intitulada Pierrot Apaixonado que põe em dúvida o amor entre eles. Colombina frustrada com o amor não correspondido mandou Pierrot tomar sorvete com Arlequim. Que coisa muito esquisita. Esquisitissima.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Jurere

Desde o ano de 1980, no período de verão, frequento o litoral catarinense, especialmente o litoral norte de Florianópolis, na ilha de Santa Catarina, que compreende a praia da Ponta das Canas até Jurerê. Em tempo de veraneio meu ponto preferencial e costumeiro era o camping em Cachoeira de Bom Jesus.
Sempre gostei dali e da região por suas agradáveis características. Qualquer praia vizinha (Ponta das Canas, Cachoeira de Bom Jesus, Canasvieiras e Jurerê) o cenário é o mesmo. De uma ponta a outra das praias citadas toda a beleza do mar se mistura com o verde de alguns morros que sobrou da exploração imobiliária. A paisagem bucólica é maravilhosa, de encanto gracioso. Continuo passeando por Florianópolis e se passaram mais de 30 anos. Naquele tempo do início da década de 80 havia alguma coisa que restou de original e autêntico na formação da ilha. Coisas muito rudimentares do jeito de viver, aquela simplicidade natural, que o progresso, a chamada indústria do turismo está arruinando.
Um exemplo de antigamente em que quase tudo tinha um modo de ser meio primitivo situava-se em Cachoeira de Bom Jesus. O caminho para ir a praia tinha como piso uma mistura de areia com terra. Dali (do camping que hoje já não mais existe tomado por um condomínio residencial) até à praia dos Ingleses distam aproximadamente cinco quilômetros. Naquela época parte do trajeto, na subida do morro, era puro barro vermelho. Sob o sol a poeira insuportável. Em dia de chuva a estrada se tornava quase intransitável. Assim se mostrava naquele tempo a tranquila e agradável região. Hoje há asfalto para tudo que é lado e dezenas de lançamentos imobiliários.
Decididamente a evolução urbanística, o crescimento imobiliário e por conseqüência a mudança do cenário de casas tradicionais para prédios modernos, a transformação do jeito de ser da região modificando-a pelo apetite devorador de empreendimentos de toda a sorte a fez perder sua antiga simplicidade, a natural singeleza, a magia da ilha.
Mudança drástica imposta pela urbanização foi a transformação de uma praia conhecida simplesmente como Jurerê, que passou a ser Jurerê Tradicional pelo surgimento da nova Jurerê Intarnacional. O avanço imobiliário que começou na região ao final da década dos anos 70, obrigou, empurrou dali a população primitiva, os chamados “manezinhos”, em sua maior parte pescadores. O infortúnio do primeiro povo a existir naquelas paragens foi ter que abandonar o local, suas origens. O pobre e trabalhador nativo teve que se mudar para dar lugar aos abastados gaúchos, aos aquinhoado paulistas e porque não ricos catarinenses da metrópole em busca da relevância social.
Jurerê Internacional seria o lugar ideal para viverem os donos do dinheiro. Igual aos milionários americanos aposentados que passam a viver em Miami, Jurerê Internacional seria o local ideal para esse tipo de gente brasileira nem que para isso fosse necessário fazer uma devastação.
Assim foi simplesmente Jurerê e agora é Jurerê Internacional.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A vez dos barrigudinhos

Nesse verão os barrigudinhos estão libertos da ditadura de comportamento de um padrão de vida imposta pelos metrossexuais há um pouco mais de 10 anos, aquele macho preocupado excessivamente com a aparência.
Livres daquela figura de conceito padronizado do tipo “saradão”, do físico delineado esculturalmente pela academia de musculação, da barriga tanquinho e do corpo depilado. Estereótipo que comentários maldosos acreditam ser a sintonia do homem heterossexual com o seu lado feminino.
Nesse tempo de calor e praia, existe uma tendência atual de gosto da mulherada por aquele abdômen masculino chamado de barriguinha sexi.
Perdeu a vez a turma do tanquinho. Por qual a razão da preferência atual do mulherio?
Talvez porque com o tanquinho teria que comer um sanduíche natural de folha de alface e tomar um suco. Com o barrigudinho as coisas mudam. Não há restrição para beber um chopinho e beliscar um “tira-gosto” de queijinho, salaminho e azeitonas.
O barrigudinho não pode ser um exagerado. A barriguinha na verdade tem ser discreta. Nada muito além de uma pancinha. Não há dúvida que a gordurinha abdominal virou moda nesse verão, um hit moderninho, tendência que surgiu em editoriais de moda, mais uma novidade como acontece em todos os verões, variando somente de tema.
Já existe até uma máxima popular de que homem que é homem tem uma barriguinha.
Na praia as sungas continuam sendo as preferidas pelos esculturalmente tanquinhos. Sem trauma. Para os barrigudinhos uma bermuda alinhada, colorida, cai bem.
Uma psicóloga especialista em sexologia, radicalmente contra os tanquinhos e a favor incontestavelmente dos barrigudinhos afirma, de acordo com seus conceitos abdominais, que as namoradas na atualidade, antes de qualquer coisa, já estão querendo saber o tipo de barriga. Se for torneada, lisinha, musculosa, estilo tanquinho está fora.
É bom ficar longe, nem começar qualquer relacionamento.
Pelo jeito, nos dias de hoje, o homem para ter sucesso amoroso precisa ostentar uma barriguinha, aquela tipo chopinho, o jeito de ser fofinho. Não será por causa disso que vai se estimular o crescimento abdominal. Dizem ser a barriguinha um leve marcador visível de saúde, de bom apetite, de bem-estar. Nada mais que isso. Ficamos por ai mesmo. Sem exageros.
E cuidado. Se a circunferência passar dos 98 centímetros já estamos numa zona perigosa patológica, do sobrepeso, quer dizer, um sujeito que já se tornou um gordo.
Certamente terá problemas com doenças coronárias, diabetes e claro com as mulheres. Barrigudinhos, gordinhos, fofinhos, tudo bem. Gordo a coisa fica difícil, tal e qual como está atualmente para os tanquinhos.